PRÓXIMA PARADA: ESTAÇÃO SARAU

PRÓXIMA PARADA:
ESTAÇÃO SARAU

Das elites para as periferias, da academia para os saraus, a literatura periférica ganha vida na Região Metropolitana de Campinas

Um lugar vazio passa a ser ocupado. Pessoas chegam e se sentam, curiosas para ouvir outras vozes. A estação de trem se ilumina. O bar abre as portas. Alguém se aproxima do microfone. Finalmente, o silêncio é povoado pelas palavras. O sarau começou.

O poeta Sérgio Vaz diz que quando uma pessoa faz a gentileza de falar e outra pessoa faz a gentileza de ouvir, é aí que nasce a literatura. Só que as vozes presentes nesses saraus vêm da periferia, historicamente sem espaço para se expressar. Cria-se então, uma conexão entre literatura e periferia, a literatura periférica.

No Brasil, a literatura periférica começa a se apropriar, no início dos anos 2000, dos saraus, eventos culturais em que tradicionalmente pessoas se encontram para se expressarem artisticamente, por meio de poesias, músicas e danças. Com o processo de ocupação dos espaços, eles se transformam em saraus periféricos. Na Região Metropolitana de Campinas, existem dois saraus desse tipo, o Parada Poética, que acontece em Hortolândia e em Nova Odessa na primeira e na 2ª segunda-feira do mês respectivamente, e o Sarau da Dalva em Campinas, toda 2ª quarta-feira do mês.

História dos saraus

Os saraus chegaram ao Brasil no século XIX, como um meio de recreação para membros da aristocracia e da burguesia, inspirados pelo modelo francês, de reuniões noturnas com o compartilhamento de literatura, música e bebidas. Eles se popularizaram no Rio de Janeiro, a partir da corte de Dom João I, e se espalharam para outras regiões do país, mas ainda em um formato elitizado. Com o tempo, as escolas também começaram a realizar esse tipo de evento, com o objetivo de estimular o desenvolvimento da criatividade dos alunos, só que ainda direcionados para as classes mais altas. A criação do Cooperifa, nos anos 2000 marca um novo tipo de sarau, com um caráter menos elitizado e aberto a todos, os saraus periféricos. Esses novos ambientes permitem à periferia expressar sua própria arte, sua própria cultura, sua própria voz e suas próprias poesias.

É “tirar a poesia da biblioteca, tirar da academia, tirar do paletó e levar a poesia pra rua, essa é a ideia do Parada Poética”, afirma Renan Inquérito, idealizador do Parada Poética em Nova Odessa e Hortolândia. Os saraus dentro das periferias se popularizaram nos anos 2000, com o surgimento do Cooperifa, em São Paulo. Mas a transposição da poesia dos ambientes elitistas começou um pouco antes, em 1990, com o movimento musical Hip-Hop.

O Hip-Hop, junto à literatura periférica, ganha espaço no Brasil ao contar a vivência das periferias. Os artistas de ambos movimentos passam a ser ouvidos por suas próprias comunidades, criando um sentimento de pertencimento e identificação com aquilo que estava sendo escrito e ouvido. Eis que surge o grupo de rap Racionais MC´s e autores como Sérgio Vaz e Ferréz.

Os saraus da região trazem a possibilidade de trocas, em um espaço aberto para que todos possam falar e ouvir sobre temas que envolvem suas dores e alegrias (Foto: Alanis Mancini)

Um sarau para salvar a alma

Em 2013 nasce o sarau Parada Poética, em Nova Odessa, pelas mãos de Renan Inquérito, geógrafo, escritor, rapper e educador. Em 2014, o Sarau da Dalva em Campinas, por Rafael Carvalho, escritor. Ambos em bares. Ambos pela necessidade de um local para falar da periferia para a periferia.

Com o tempo, o bar que sediava o Parada Poética fecha, e ele passa a ser realizado na estação ferroviária de Nova Odessa. Em 2022, chega também à estação ferroviária de Hortolândia. O uso das estações é simbólico, pois elas se encontravam abandonadas, desativadas e inóspitas. Renan destaca que esses lugares são lugares de encontros e despedidas, de movimento, de passagem e é exatamente isso que querem da poesia, “que ela vá, que ela volte, que não fique parada na prateleira”. Apesar das estações terem sido desligadas, os trilhos continuam a funcionar, com o trem passando enquanto as pessoas o sarau acontece.

Já em Campinas, no Bar Estrela Dalva, o poeta Rafael Carvalho cria um sarau com microfone aberto que conquista diversas pessoas. Dez anos depois, o Sarau da Dalva reúne um público fiel de mulheres, homens, crianças, jovens e idosos que se expressam ali às quartas-feiras. “O Brasil é praticamente todo periférico. Nós somos muitas pessoas, com uma potência imensa enquanto povo e enquanto individualidades. E a gente pode fazer muita coisa, inclusive pela poesia, tendo o amor como principal forma de resistência”, afirma o idealizador.

“O sarau é um grito nosso, uma vontade de querer reverberar nossas ideias pela cidade” , como dito por Renan. E hoje é dia de sarau.

A literatura periférica, quando manifestada nesses ambientes, encontra um espaço aberto para sair do papel. “Nos saraus você tem um contingente de escritores que, às vezes, não chegam a publicar seus textos, mas tem seus textos lidos e ouvidos por um público. Ali, você tem uma dinâmica muito mais encerrada no sentido que as pessoas estão escrevendo para seus pares, principalmente para as pessoas que estão vivenciando e compreendem muito bem o que está sendo dito ali”, afirma Mei Hua Soares, doutora em Linguagem e Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP).

Dessa forma, a periferia encontra um local livre, em que podem recitar suas poesias ou ler suas obras sem terem que passar por todo processo de publicar um livro. De acordo com Mei, o principal objetivo desses autores é terem suas vozes fixadas em algum lugar e ouvidas por alguém, afinal essa voz sempre esteve ali, só que ninguém ouvia.

Afinal, é Marginal ou Periférica?

A literatura periférica nasce a partir de um outro gênero que se popularizou nos anos 70: a literatura marginal. Jovens autores marginais, das classes médias e altas da sociedade, combatem a censura editorial e ideológica durante os anos da ditadura e dão início a um movimento de textos que usam novas linguagens e formas, além de se posicionarem contra o estado e expressarem através de suas obras, as dificuldades da juventude da época.

No entanto, como os termos periferia e marginalidade são confundidos, as duas literaturas também são. Para Marcio Vidal Marinho, formado em letras e mestre em estudos comparados de literaturas de língua portuguesa pela USP (Universidade de São Paulo), a marginal é marginal no sentido político, porém não é periférica, já que não vem da periferia. “Para ser um poeta da literatura periférica, você tem que ter vindo da periferia, não precisa necessariamente morar, mas tem que ser seu lugar de origem”. Ou seja, toda literatura periférica é marginal, mas nem toda literatura marginal é periférica.

Ao comparar o poema “Gente Miúda” do autor periférico Sérgio Vaz e “O Bicho” do poeta marginal Manuel Bandeira, Márcio explica a diferença entre os gêneros. Ambos os autores contam a história de uma pessoa em situação de rua, o que muda é a ótica, o chamado “eu lírico”. Para Vaz, a pobreza não é estranha, ele não sente medo daquela situação, por isso ele humaniza o protagonista, Daniel, e ao longo de sua obra apresenta as consequências sociais do porquê daquela situação está acontecendo, causando uma reflexão e dando um olhar crítico à situação. Já Manuel distancia o morador, sem nome e sem características, desumanizando o personagem.

Gente Miúda
Daniel não tinha documentos,
RG, certidão ou carteira profissional.
Não tinha sobrenome,
não tinha número, nem cidade natal.

Quase um bicho, dormia na rua sobre as notícias
e acordava na sarjeta, na calçada ou no lixo.

Os dentes, em intervalos,
mastigavam as migalhas do mundo,
as sobras do planeta.

Era soldado
das tropas dos famintos.

Os trapos - fardas dos miseráveis -
cobriam-lhe apenas o peito, a bunda e o pinto.
o açoite do abandono.

Amigos? Só os cães,
que o protegiam dos seres humanos.

Morreu
velho e abatido
depois de viver, todos os dias,
durante trinta e sete anos,
como se nunca tivesse existido

Sérgio Vaz
O Bicho
Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira

Márcio explica que ninguém falava com o olhar de dentro da periferia até o surgimento da literatura periférica, fortemente entrelaçada ao Hip-Hop.

Visão Periférica

Nos anos 1990, o intenso processo de urbanização e industrialização da maior metrópole do Brasil, São Paulo, chega a um ponto de explosão: os bairros periféricos começaram a registrar números muito altos de homicídios, com a cidade alcançando, entre 1985 e 1995, cerca de 58.354, segundo dados da Secretaria Pública de São Paulo. Os bairros considerados mais perigosos, Jardim Ângela e Capão Redondo, registraram naquele mesmo período, 20 homicídios por mês.

Com toda essa violência, a periferia sente a necessidade de compartilhar as dificuldades sentidas e expressar a realidade que vivenciam de alguma maneira, em busca da formação de uma identidade periférica e da transformação social daqueles espaços. “Acho que a literatura marginal é uma ponte de conhecimento para aqueles que não têm acesso à periferia. Ela é uma comunicação interna para a galera da periferia, mas também uma comunicação para levar para aqueles que não tem acesso à periferia”, afirma Bruna Bueno, organizadora do Parada Poética.

"Assim como a comunicação é porta de entrada, a poesia marginal também é, ela é uma ponte que tem muito a se expandir" (Foto: Alanis Mancini)

Aos poucos, o movimento da literatura periférica começa a ganhar forma para além da literatura marginal, primeiro em São Paulo, e depois no Rio de Janeiro, se espalhando com o tempo para diversas cidades do país. As obras que surgem carregam muita inspiração do Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, considerada a primeira escritora periférica do país. Publicada em 1960, a obra reunia registros de seus diários, nos quais contava a vivência da sua favela, e é considerada a primeira de seu gênero. É com a contribuição de Carolina, que muitas outras obras tiveram a oportunidade de se difundir.

Palavras pronunciadas pelo poeta

Genival Oliveira Gonçalves faz parte de uma história que nunca se encerra. Aos 58 anos, ele continua a declamar "O amor venceu a guerra". Mais conhecido pelo seu nome artístico “GOG”, o poeta, rapper e escritor tem mais de 45 anos de carreira. Sendo considerado "Poeta do Rap Nacional", GOG segue fiel ao movimento hip-hop, aproximando rap e literatura, poesia e microfone, papel e caneta.

GOG destaca que nos anos 90, o ritmo do rap foi se aproximando e se equilibrando às letras das poesias e, como consequência, a palavra se tornou tão importante quanto o ritmo. A partir dos anos 2000, a cena do rap foi oxigenada pela produção cultural periférica.

Poesia contra a violência

Da mesma forma que os escritores periféricos, os poetas dos saraus também apontam para temáticas como desigualdade social, violência policial e racismo. “Tem uma liberdade do que a gente pensa e do que a gente fala. Quando vejo pessoas sofrendo preconceito, quando vejo a humanidade não vivendo aquilo que é humano, eu gosto de me expressar escrevendo. E o sarau é uma liberdade de minhas expressões”, afirma António José Fernandes, lavrador, conhecido no sarau como Maritaca.

O participante do Sarau Parada Poética, Paulo Cotegipe, conheceu a literatura periférica a partir de sua profissão. Ele é professor na ONG Projeto Gente Nova (PROGEN), em Campinas, e sente que o sarau o ajudou a entender mais o potencial de ajudar os jovens da periferia. “Eu trabalho com crianças e adolescentes vítimas de violências sociais, então faço escrita, faço poesia, dou atividade de esportes, música e histórias. Mas a potencialidade do espaço aumentou minha visão, meu campo de ideias, de possibilidades”, explica Paulo.

Do sarau para a escola, a literatura periférica também se tornou um ponto de estudo, sem deixar de lado a expressão dos participantes. É assim que começa o Poesia contra a violência, uma disciplina eletiva na Escola Estadual Guido Rosolen, na periferia de Hortolândia, pelas ideias dos professores Bárbara Prestes e Acácio Araújo.

A disciplina tem o objetivo de usar a literatura para abordar vários temas, como violência policial, racismo e machismo e atualmente conta com 44 alunos, que varia de acordo com o semestre. As produções dos alunos da eletiva já resultaram em dois livros publicados de forma independente. “Eu comecei a presenciar situações de violência dentro das escolas, entre os alunos e os alunos com os professores. Aí eu comecei a abrir um espaço para essa conversa, a partir disso eu percebi um certo engajamento dos alunos com relação à escrita, literatura e poesia”, conta Bárbara, criadora da eletiva. O projeto conta ainda com a constante participação dentro dos saraus, levando os alunos em uma excursão ao Parada Poética de Hortolândia. Lá, eles podem compartilhar seus textos e externalizar os temas discutidos dentro do projeto.

A literatura é uma ferramenta de protagonismo para a juventude, principalmente quando inserida na escola unida à liberdade de expressão (Foto: Alanis Mancini)

Para um dos participantes da disciplina, Davi Nelson, de 17 anos, o sarau “é um lugar que te acolhe, que te faz sentir alguém especial. É um ambiente que te traz felicidade”. Outra participante é Gabrielle Bueno, de 17 anos, que diz ter se sentido emocionada ao recitar pela primeira vez, “a poesia vai limpando a gente, a gente consegue falar e expressar o que estamos sentindo. Foi um momento muito importante para mim”.

Para esses jovens, a literatura foi um instrumento de apoio em momentos de incerteza, de dificuldade em casa ou na própria escola, e entendem que a literatura deu voz para que pudessem expressar o que estava preso dentro de si.

“Eu acho que a educação transforma tudo, ela é a chave para salvar nossa vida. E principalmente em escolas públicas, em periferias, que são a maioria do nosso país, acho que quanto mais a gente ampliar essa educação de poesias, de saraus, isso vai transformar a vida de todos”, diz Rafaela Macedo, de 15 anos, que não deixa de sonhar e acreditar que a situação das periferias pode melhorar.

A eletiva possibilita o uso da escrita para o combate e resistência à violências que nem sempre entram em pauta nas escolas (Foto: Alanis Mancini)

“Você precisa ter a sua parcela de sonho, tem que ser um direito, porque por intermédio dele que talvez você se mova, que você construa seus trajetos e ações”, ressalta Mei Hua que atuou por catorze anos na rede estadual de São Paulo, levando obras do gênero para seus alunos. Em um dos casos, um aluno disse: “Esse cara (Allan da Rosa) trabalhou como feirante, gari e agora tá escrevendo profe, então acho que eu também posso escrever”. Para ela, é uma questão de se ver no outro e perceber que é possível seguir um caminho que antes era negado, como se fosse uma autorização para escrever. “Esmeralda Ortiz fala que um dos castigos maiores dentro da Febem é você não ter acesso a lápis e caneta, porque ela queria escrever e não podia”, diz a pesquisadora.

Quando se é desrespeitado, a linha entre o bom e ruim começa a ficar tênue. É o que explica a professora Mei Hua.

Poetisa de zona

De adolescente “nerd de quebrada” como ela se intitulava, a “poetisa de zona” como se chama em seus poemas, a vida de Vanusa Passos é perpassada pela literatura periférica. Ao primeiro contato com os saraus, se emociona do início ao fim, pois lá descobre uma liberdade para falar o que sente. “Acho que uma característica dos saraus é a possibilidade dessa poesia marginal, esse escrever livre, nem tão dentro das regras gramaticais, mas com um peso de sentimento, independente da qualidade linguística. Ele é democrático, porque todo mundo pode fazer”, declara.

Em sua poesia, traz metáforas e provocações, seguindo uma linha erótica implícita, o que desperta curiosidade e questionamentos. “Uma mulher falou que eu era poetisa de zona e pretendo escrever um livro com esse nome”, brincou. A resposta ao suposto insulto vem de forma tão natural, pois ela trabalhou no Jardim Itatinga, bairro com grandes zonas de prostitiuição em Campinas, e não tem vergonha disso, tem orgulho. “Tenho toda uma experiência como educadora dentro de uma zona, o que a pessoa achou, que ia me ofender? não vai me ofender, não é?”, diz.

Inclusive, é dentro do Itatinga que conhece o grafite, forma de arte que incorpora aos seus trabalhos sociais, junto da poesia, o esporte e o lazer. Ao trabalhar com jovens dentro de entidades assistenciais de Campinas e que cumpriam Liberdade Assistida (LA) após passarem pela Fundação Casa, ela diz ter aprendido de perto a necessidade de que algo como a literatura periférica seja apresentada a esses jovens, para que eles tenham alguma ferramenta de mudança, uma alternativa ao crime e ao uso de substâncias químicas.

Em poucas palavras, muita arte. Segue a infinita metragem e contação de Passos, Vanusa. Poeta periférica. Poetisa de zona.

O vídeo a seguir apresenta conteúdo não recomendado para menores de 18 anos.

“Na minha profissão, eu precisava de mais, porque a faculdade nos forma, mas a gente chega no mundão e tem que fazer nossos corres, tem coisa que não enquadra. Eu fui criando minhas próprias estratégias de trabalho com base teórica, mas com muita vivência também”, afirma. Vanusa explica que encontrou no Sarau da Dalva e no Parada Poética um espaço que serve de complemento profissional e motivação pessoal.

“Talvez essa seja a fita mais importante da chegada da literatura periférica: a gente percebeu que também podia escrever livros.” GOG